quarta-feira, novembro 29, 2006

E no meio da Catástrofe, uma pequena Catástrofe...

No seguimento do meu post anterior....

..hoje, o day after pós-simulacro, cheguei ao hospital e vi um colega mais velho triste e cabisbaixo. Nada me prenderia a atenção mais do que o tempo suficiente para dizer 'bom dia' e continuar a ver os meus doentes. Contudo, ele é um daqueles colegas raros que para além de bom profissional e bom colega, é também um ser humano fantástico, em que nenhum doente lhe aponta o dedo. (Aliás, se ele fosse um hotel, viria escrito um meritoso 'excepcional' e '6 estrelas' ao lado....)
Parei e sentei-me ao seu lado. Peguntei o que se passava.
Em jeito de desabafo, ele contou:

-No meio da balbúrdia do simulacro, o bloco de consultas (onde geralmente os doentes triados a verde (pouco urgentes) são observados, com um intervalo máximo normal de 120min) entopiu. Para além dos verdes, excepcionalmente também se acumularam alguns amarelos.
Uma pilha de fichas acumulou-se em cima das boxes de consulta ( e esboçou gestualmente uns 10 cm de dedos...) A primeira ficha pertencia a uma rapariga de 17 anos, uma doente com trissomia 21 que vinha hoje ao S.U. por dor de dentes, acompanhada pela mãe... Chamava-se Maria (nome fícticio). Uma dor de dentes, imagina! Não sou dentista e chamar o estomatologista de prevenção é uma tarefa mais difícil que encontrar uma agulha num palheiro... (continuou a descrição:) Perguntei-lhe se tinha ouvido os apelos na rádio para recorrer aos centros de saúde dadas as circunstâncias de simulacro.... Ela peremptoriamente disse que sim, mas que isso não a impediu de vir ao hospital. A filha tinha dor de dentes (o colega respirou fundo...) Ao ouvir aquilo, mandei-a embora para os centros de saúde, sem lhe fazer nem prescrever qualquer tipo de medicação analgésica.... E continuei a olhar para a pilha de fichas 'reais' que se acumulavam durante o simulacro.... Arrependi-me, ainda saí atrás delas, mas elas já iam longe em direcção ao centro de saúde....
Já fiz muitas coisas boas pelas pessoas na urgência, mas ontem fiz uma coisa má e não se sai da cabeça....

-Não te preocupes -disse eu. - Tenho a certeza que ela foi bem atendida no centro de saúde. E tu, és o melhor médico do mundo. Todos nós temos dias 'menos reais'....

1 comentário:

J.F disse...

Que dizer?
Bonitas palavras que dirigiste ao colega.
Não te esqueças de colocar esta história real numa página do teu diário.
Parabéns.