segunda-feira, dezembro 18, 2006

A Vida, um Tumor da face e as Vacas...

Há já alguns dias que não falo de urgências.
Não porque tivesse escolhido radiologia, mas sim porque há situações que merecem ser digeridas e esquecidas.

Como o dia de urgência da semana anterior. Foi uma 6f.
Não, nem não tocou a campainha da reanimação...
Em compensação e, à boleia do rebuliço natalício, houve (mais) uma enchente na urgência.
Parecia um dilúvio de gente. Nós eramos a Arca de Noé.
Houve um caso que me fez parar para pensar. Refletir.

Chamei a Sra Tolentina (nome fictício) por volta das 11h da manhã. Vinha enviada de um CS de uma terriola no interior, com uma carta a dizer: «Doente sexo feminino, 52 anos, com antecedentes de neoplasia do seio maxilar direito, sujeita a cirurgia paliativa, com alta do serviço de ORL a.... Hoje queixa-se de recusa alimentar e vómitos...»
-Um tumor da face..!? Life's a bitch!! -pensei eu.
Confesso que me custou levantar os olhos daquela carta e colocá-los na face da Sra Tolentina. Não por laxidão, mas por cobardia.
Respirei fundo.
A Sra Tolentina, em maca, vinha acompanhada por uma irmã, de cabelos negros grisalhos e com uns óculos garrafais sustentados por umas ansas de fita adesiva.
Sorri.
Tentei esboçar o mais gigantesco dos sorrisos naquele ínfimo estado de alma.

Falei com ela. E com a irmã. Observei-a. Pedi análises, exames (valeria a pena pedir TC-CE outra vez? Fi-lo, que se lixassem as contas da urgência...), prescrevi terapêutica.
Analgesiei. Analgesiei muito. Sabia que nenhuma droga podia inverter aquela triste sina, mas a dor tinha obrigatoriamente que ser abolida. Isso sim era um pequeno milagre.
Olhei para a escala para ver quem era o colega de ORL de serviço, mas isso ainda atenuou ainda mais as minhas esperanças.
Aguardei.
Naquela confusão, a doente ficou a um canto. A irmã também. Ainda lhe expliquei que os exames iam demorar e que ela poderia dar uma volta se lhe aptecesse.
Ela respondeu: «-Não Sra Dra, não conheço a cidade...» Preferia ficar ali. E não queria deixar a irmã sozinha.
Sorri e dei-lhe uma palmadinha nas costas.
As horas passaram. O dilúvio de doentes continuou.

Nesse dilúvio, e como por milagre, também entra na urgência uma colega de ORL porreira que, por coincidência, conhecia bem a doente. Agarrei-a como se fosse a último homem à face da Terra.
A colega, simpatiquíssima como sempre, com compaixão da Sra Tolentina, disse para eu avançar com o boletim de internamento, sob a sua responsabilidade. «-Ao menos que tenha um fim digno...» -disse ela.
Pouco depois, chegam as análises e os exames. Finalmente.
Preenchi o boletim de internamento à pressa e entreguei a uma enfermeira.

Falei com a irmã e disse que ela ia ficar internada.
Ela ficou satisfeita mas logo depois mostrou uma ruga de preocupação....Olhou para o relógio que marcava vagarosamente as horas a passar nas urgências e disse:
-É pena. Acabei de perder o último autocarro que ia para a aldeia.
-Não tem ninguém que a posso vir buscar? -perguntei eu.
-Não. Eu vivo sozinha com a minha irmã, e só tenho os bichos por companhia.... Vou ter que pagar um táxi....
....
Não tive coragem para dizer nada. Um táxi para a sua aldeia significaria todo o dinheiro da reforma daquele mês. E estavamos em Dezembro.
Fui para a sala dos médicos.
Encontrei um colega e contei-lhe o episódio. Perguntei-lhe ele achava muito errado que eu chamasse uma ambulância para a acompanhante daquela doente que ia ficar internada. Ele disse que compreendia, mas que eu não podia fazer semelhante coisa. Era ilegal.
Ele sugeriu que ela ficasse a dormir discretamente no hospital, numa banquinho à porta...

Fui ter com a irmã da Sra Tolentina. Contei-lhe o teor da conversa com o meu colega.
-«Obrigado, mas não posso ficar. Tenho que ir para casa. Tenho um palheiro com bichos e eles precisam de mim....As minhas vaquinhas, as minhas cabrinhas... Não posso ficar....» -respondeu.

Regressei à sala dos médicos. Sentei-me. Levei as mãos à cara e senti as lágrimas as escorrerem-me na face. Limpei com o interior da bata.
O meu colega sorriu para mim.
Agora era ele que me dava uma palmadinha nas costas.


Ainda pensei em dar-lhe boleia na minha hora de saída, mas por azar naquele dia tinha prometido levar um colega a casa. Não podia faltar à promessa.
E lembrava-me de me terem aconselhado a manter sempre a frieza e nunca abrir precedentes na urgência.
Preguiça e receio, talvez um pouco.


Levantei-me. Olhei para o meu relógio.
-Ainda bem que escolhi radiologia, pensei.

4 comentários:

Gasel disse...

Não tens que ter vergonha de ser dificil olhar... Eu já voltei para trás porque não consegui olhra paa um doente com uma neoplasia teminla o maxilar inferior!

Gasel disse...

As vezes crava-se uma boleia numa ambulância que vá para o CS da zona... se os bombeiros forem porreiros, a coisa vai!

Ou - acho que uma vez fiz isso ... - diz-se ao acompanhante para se inscrever, fazer de doente um bocadiho, e depois já se pode "pedir" ambulância/transporte
;)

edelweiss disse...

ok, agora já sei o truque... obrigado

Jorge disse...

A vida às vezes prega umas partidas...
Por vezes quem dá a notícia também sofre. Não deixes que isso te perturbe, apenas comprova que és humana, e que empatizas com os pacientes.
Continua em frente. Nada que o tempo não resolva, lá te irás habituando.
Fica bem.