quinta-feira, setembro 14, 2006

Como tudo começou...

Bem vou começar pelo início...

Decidi escrever estas linhas por mero acaso após a minha 1º urgência pós-férias.
Ontem por acaso, hoje intencionalmente.

Queria dar forma aos meus pensamentos de médica que muitas vezes não podem fugir para além da bata e da doutrina, queria dar forma as meus pensamentos enquanto pessoa livre que muitas vezes não podem fugir para além do super-ego.
A todos, queria moldá-los como se fossem barro e deixa-los partir. Partir. Ir.

(Para quem quiser ouvir, neste caso ler….)


Como tudo começou....

...2f cheguei de férias. Férias férias, percebem? Daquelas em que se passa os outros 352 dias do ano à espera que cheguem....
Cheguei ao hospital (com o jet-lag do costume) e, supreendentemente, vi que estava escalada de urgência para esse dia! Bocejei. Olhei melhor. Ajeitei os óculos que não trazia e re-re-confirmei o que estava escrito.
Estava mesmo de urgência!… (a chamada entrada 'em grande' pós-férias!)
Nem um paraquedista fazia melhor.

As únicas palavras que nesse momento entupiam o meu pensamento era uma versão estúpida de uma anúncio estúpido de uma estupidez qualquer, do tipo:
Melhor regresso ao traballho?
-Foi voçê que pediu?

Lá fui eu.
Vesti a bata, agarrei no esteto e meti todas as coisas no bolso que fazem sempre tanta falta entre a vida e a morte. E são muitas.
E um sorriso estampado no rosto. É a melhor arma para se enfrentar os tiros de bazuca das urgências e tentar dominar o caos de uma urgência no primeiro dia da semana no primeiro dia de trabalho pós-férias (para bom entendedor)...

21h15m toca a campainha da sala de reanimação.
21h 15m 20s lá estava eu, suada, após um sprint de 10m em direcção à sala de reanimação. (De fazer inveja ao Obiqwello).

Um indivíduo de cerca 40 anos com queimaduras em 80% a 100% do corpo entrava naquele instante na sala. As queimaduras de 3º grau confundiam-se com corpo carbonizado. Um cheiro intenso a queimado fedia a sala. E as nossas almas.

O silêncio sepulcral naquela sala de reanimação deu lugar ao burburinho dos intensivistas e enfermeiros.
Reanimar, ressuscitar, salvar.

-É bombeiro? Alguém perguntou.
-Não, é incendiário…. Alguém respondeu.
Nesse momento novo silêncio na sala.

-Antes um incendiário que um bombeiro. Pensei eu. Pensamos todos nós. Todos!
Mas ninguém o disse…

Fiquei imóvel. Ali.

Reanimar, ressuscitar, salvar.

-Que raio de vida iria ter aquele homem se sobrevivesse? Sem face,e corpo desfigurado? Haverá pena maior para um criminoso?
Continuei a pensar. Continuamos todos a pensar. Ninguém o disse... Porque há coisas que não se pode dizer nunca. Nunca!
Esses pensamentos guardam-se bem guardados ou…. escrevem-se.


O.N.R. –Ordem para Não Reanimar


Ps: o indivíduo morreu minutos após o início da reanimação.
Descanse em paz.

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